Pular para o conteúdo principal

Destaques

TEMPERATURA GRANULAR

Por Paulo Rodrigues      Certo dia, um astrônomo ao ligar o rádio, se depara com o locutor narrando em tempo real a queda de temperatura naquela localidade: “Cinco graus Fahrenheit, quatro graus...três graus...”, diz o radialista atônito. E então, finalmente, ele anuncia: “se continuar assim, logo não sobrará mais nenhuma temperatura!”. ¹      Embora esse anedótico acontecimento demostre um grande desconhecimento sobre os princípios da termodinâmica, ele também nos traz à tona algumas questões interessantes relativas às escalas de temperatura. Muitos pesquisadores elaboraram suas próprias escalas, no entanto, atualmente as três mais importantes são: a escala Celsius, Fahrenheit e Kelvin. Enquanto as duas primeiras permitem números negativos (o que torna ainda mais injustificável a conclusão do locutor de rádio), a escala Kelvin é “adepta” ao conjunto ampliado dos números naturais, adotando a noção de zero absoluto. O Movimento Granular      I...

Pretérito Manicômio: O Oficio do Historiador

Por Paulo Rodrigues

Até que leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça vão continuar glorificando o caçador.
Provérbio africano.


Uma breve espiada ao passado nos mostra o quanto estamos abarrotados de valores vigentes – o preconceito nos desmascara, mostra-nos como somos e o tempo em que vivemos. Ao serem queimadas, mulheres acusadas de bruxaria tiveram suas mortes assistidas, celebradas e aplaudidas, por muitos, durante pouco mais de 300 anos. Em Alexandria, Hipátia, a filósofa, teve a pele e seus membros arrancados por cristãos que, por sua vez, marchavam para fazer a justiça divina. Não se tratava somente do medo eclesiástico da perda de prestígios, por sentir-se ameaçado, mas, também da crença popular de que aquilo era suficientemente bom.  

Alguns habitantes do continente americano tinham entre seus hábitos notórios, a antropofagia. Comiam seus inimigos em cerimônias ritualísticas sem pestanejar, porém, não se julgavam pessoas más ou bárbaros. Isso nos causa calafrios, medo, consideramo-los, muitas vezes, loucos. Como poderia alguém praticar tal crueldade?”, perguntamo-nos 

O célebre Machado de Assis, em seu livro, O Alienista, narra sobre o Dr. Bacamarte, um psiquiatra que julga quase toda a sua cidade de origem como insana, internando grande parte das pessoas que a compunha, o que mais tarde, o faz questionar-se sobre sua própria sobriedade e, então, trancar-se sozinho em seu manicômio. Ao escrever sobre fatos passados, questões como essas nos vem à mente. No final concluímos que é impossível escapar da loucura, “não há saída para a loucura senão outra loucura”, cogita Becker. Hoje, você e meio bilhão de pessoas consideram-se integralmente sãs. Amanhã, outras em maior quantidade vos censurarão. O passado é como uma espécie de manicômio para os olhos do presente. Quando nos tornarmos participantes deste, qual será a crítica que nos conceberão? 

Não obstante, da mesma forma que podemos – e fazemos isso constantemente – considerar o passado negativo ou degenerado, também o tomamos frequentemente como uma época de ouro, idílica e enobrecedora; caso semelhante pode-se dizer acerca de determinada visão sobre o período ditatorial civil­-militar brasileiro. Em história dizemos, de maneira bastante assertiva, que fazer isso é tratar a história como memória.


Vieses Cognitivos


Fazer parte de um bando é também integrar-se de valores, vestir o brasão social. O historiador tenta veementemente desnudar-se desses padrões, todavia, encontra-se também inserido num meio em comum, o que torna essa tarefa bastante utópica. 

Lucien Febvre (FEVBRE apud OLARTE, 2009), disse certa vez que “o anacronismo é o pecado que todo historiador deve evitar”. Embora, seja algo que traga grande prejuízo aos frutos do ofício de um historiador, também é um pecado inescapável, mesmo para o historiador mais profissional. 

O termo “anacronismo” se direciona comumente à disciplina de história. Mas essa questão não diz respeito apenas ao estudo do passado, este, no entanto, é mais um problema epistemológico – logo, atinge toda área do conhecimento – do que algo restrito a um campo. Por que justo a nós historiadores caberia o papel de conviver com tal dilema?  

Desse modo, como estamos falando de atribuições de valores e, como o estudo histórico está inteiramente ligado ao tempo passado/presente, tais valorações são projetadas sobre a questão temporal que a história se interessa. Por isso, dizemos anacronismo, no qual "cronos" representa o tempo. No entretanto, quando explanamos o conceito, percebemos o quão essa correlação entre valores e conhecimento é inteiramente dependente entre si. 

Até pouco tempo atrás considerava-se a eternidade da alma como essencial para o indivíduo, aquilo de mais importante estava, portanto, fora do mundo sensível, embora, esse fenômeno não tenha mudado por completo, ele - por vezes - serviu de justificativa para atos que atualmente são vistos como barbáries na história¹, o que não quer dizer que sempre fora desse modo. Inúmeros foram os crimes e atentados da humanidade contra si mesma. No entanto, direitos humanos são um conjunto de valores hodiernos; pertencentes ao nosso século e as transformações nesses valores não param de acontecer, em algum momento, possivelmente, seremos integrantes de um improvável pretérito manicômio ou de algum paraíso terreal.

O caso de Francesco Petrarca (1304-1374) - escritor e criador do termo Idade das Trevas - é bastante emblemático. Petrarca, ao caracterizar de maneira tão negativa os sujeitos da Idade Média, mal poderia imaginar que ele também estaria inserido no rol dos homens "medievais", visto que tradicionalmente o período mencionado apenas se encerra em 1453, portanto, depois da morte do escritor. De maneira análoga, Agostinho de Hipona, considerado o primeiro filósofo medieval, morre antes do início da Idade Média, ao passo que nas visões fantasiosas dos relatos seiscentistas a América ora é vista como um paraíso, ora como um inferno com seres horrendos e disformes e, onde os iluministas de meados do séc. XVIII viam trevas, os românticos do séc. XIX viam heróis de cavalaria.  

É bem verdade que não sabíamos muito sobre nós mesmos há 1000 anos nas cruzadas e há 670 na peste bubônica que assombrou a Europa. Sequer a verdade que aparentemente buscamos com tanto afinco esteve sempre entre as nossas preocupações. Explorara-se cada parte do corpo humano e alguns pontos do espaço - doenças foram desvendadas, desmistificadas, tratadas e curadas; novos mundos foram encontrados. Os resultados dessas relações alineares nos direcionaram não para um progresso, mas para um novo modo de perceber a fisionomia do mundo. Dessa vez o conhecimento científico aparece como uma das possibilidades viáveis à sobrevivência do homem. Entrementes, a sociedade atomizada carrega essa alcunha, pois de alguma forma perdeu-se num individualismo hedonista e neoliberal. Quanto à imortalidade da alma, não fora encontrada em parte alguma.


A Escrita da História

 

A transformação social, camuflada de progresso, derivada, dentre outras coisas, da evolução tecnocientífica, condiciona dialeticamente os demais campos do conhecimento humano. A alquimia dá lugar química, a astrologia perde espaço para a astronomia, a biologia desvincula­-se da teologia, novas ciências surgem e, no campo da história, uma nova historiografia vai se tornando presente. A Idade Média Ocidental teve dentre uma de suas principais características a tendência em explicar tudo sob a perspectiva teológica, porém, vê-­se o oposto na era líquida. A ciência materializou todos os fenômenos preponderantes, tornando-os precedido de matéria, logo, explicáveis. Porém, em ciência explicar é descrever. Dessa forma, adentramos nos mais variados fenômenos sem o medo da culpa, tão bem expressivo após a obra “O discurso do método”, de Descartes, e em paráfrases como a de Galileu, a bíblia nos mostra como chegar ao céu e não como o céu chegou lá”. 

Enquanto   um   novo   tipo   de sujeito se formava – temperamental como enfatizado por Freud, insignificante e niilista, como insistem Darwin e Nietzsche respectivamente – os antigos modos de se escrever a história (antiquários, monografias eclesiásticas, dentre outros) tornam-­se inviáveis; incapazes de explicar a humanidade em sua plenitude e complexidade. Já no séc. XVIII inicia-­se em vários países da Europa, inspirados em Voltaire, um movimento de caráter pluralista que buscava abordar temas como os de moral, costumes, leis, dentre outros aspectos da vida humana antes ignorados na historiografia,  mas estes foram ofuscados por outro movimento mais intenso iniciado por Ranke que, embora tivesse um viés mais aberto para diferentes temas além de guerras e história dos grandes homens, seus predecessores não o tiveram,   fechando-se   desta   forma,   em   seus   arquivos   históricos   restritos   à   política. 

Assim, o positivismo do século XIX, a história científica que visava alcançar ''aquilo que realmente aconteceu'', baseada num monopólio estritamente político torna-se preponderante. Quando na transição da Idade Média para a Moderna, num longo processo repleto de particularidades, começa a se formar os Estados Nacionais modernos, esse tipo de história se estabelece de modo a garantir a estabilidade do fenômeno, reforçando seu caráter identitário e legitimando a soberania do Estado. Os escritos historiográficos reforçam o potencial estatal, e importantes historiadores tomam postos públicos, recebendo o papel de guardiões dos arquivos de sua nação, sendo o apogeu dessa história de cima para baixo - embora, ainda assim com algumas contrariedades. Reduzir o século XIX a um modo de pensar restrito seria um erro. Entre as revistas fundadas no final do XIX, destacam-­se a Historishe Zeitschrift, Revue Historique, English Historical Review, todas bastante tradicionalistas em suas abordagens.entre os poucos que se contrapunham ainda neste período podemos destacar Michelet, Burckardt e Marx.   

A eclosão da Grande Guerra e o “desânimo civilizatório” da descoberta de que a humanidade é perfeitamente “mortal”, após os conflitos da modernidade; as consequências de um capitalismo cada vez mais enraizado, e que se expande com seus tentáculos leviatânicos e monopolizadores, faz surgir o que foi diagnosticado pelo pai da psicanálise como um “mal-estar na civilização”. Uma nova “psique” humana começa a fazer-se presente. Entrementes, enquanto a razão foi capaz de criar a bomba atômica, o individualismo liberal criou a nossa moderna alienação.  

À medida que tais características se intensificam novas correntes de pensamento surgem, como o materialismo histórico de Marx e a revista Annales de Bloch e Febvre, posteriormente. A primeira vendo a história como uma sucessiva luta de classes, algo bastante inovador à época.  

A revista francesa Annales fomentava a ideia de que os fatos históricos são inacabados e impuros, em contrapartida com a história arquivista dos seguidores de Ranke. Isto abre espaço para o levantamento da questão de um passado inalcançável, tendo seu auge com a crítica de Edward Carr e na chamada “crise da história”.  

Desta forma, inicia-se uma série de impasses entre historiadores e outros estudiosos do passado. No entanto, esta discussão não é tão simples como parece, sobre isto Hobsbawm diz:  


 Nas últimas décadas, tornou-­se moda, principalmente entre pessoas que se julgam de esquerda, negar que a realidade objetiva seja acessível, uma vez que o que chamamos de “fatos” apenas existem como uma função de conceitos e problemas prévios formulados em termos dos mesmos. O passado que estudamos é só um constructo de nossas mentes. Esse constructo é, em princípio, tão válido quanto outro, quer possa ser apoiado pela lógica e por evidências, quer não. Na medida em que constitui parte de um sistema de crenças emocionalmente fortes, não há, por assim dizer, nenhum modo de decidir, em princípio, se o relato bíblico da criação da terra é inferior ao proposto pelas ciências naturais: apenas são diferentes. Qualquer tendência a duvidar disso é “positivismo”, e nenhum termo desqualifica mais que este, exceto empirismo. (HOBSBAWN, 2013, p.8-9). 

 

De fato, o empirismo científico, torna-se inviável para a história, porém, isto não impede uma interdisciplinaridade entre as demais ciências, que se alimentam mutuamente. O problema da objetividade torna-se mais acentuado quando nos referimos à forma que lidamos com os fatos históricos. Os conceitos e termos usados para a obtenção desse conhecimento, também se encontram repletos de influências culturais; vieses que se acumulam no decorrer do tempo. Embora, esse fenômeno não diga respeito apenas a disciplina de história, nesta tal problemática apresenta-se de forma bastante singular, visto que, como enfatizado por Marx, a história só se repete como farsa.  

Formas e métodos para analisar a história existem inúmeros. Várias correntes historiográficas trazem para si a responsabilidade de buscar entender a história de maneiras distintas, recorrendo a lados que se comprimem para uma mesma vertente, seja economicista, culturalistas, políticas, dentre outras. Essas tentativas, por vezes, simplistas trazem consigo equívocos e a ideia de que o desenrolar da história é um fenômeno de pouca complexidade, o que de forma alguma pode ser tido como verídico. Essa visão, por sua vez, pode, em parte, ser superada através de um diálogo crítico entre as demais ciências.   

Por outro lado, numa sociedade em que existe uma aparente tendência às extremidades políticas, como a nossa, na qual a disciplina histórica é lidada nas escolas, por vezes, de maneira não problematizante - na qual ideias revisionistas servem de palco para anúncios que alimentam um crescente mercado digital, escolas historiográficas são comumente atacadas sem o mínimo de compreensão ou entendimento. Os próprios Annales não possuíam uma visão metodológica restrita e um sistema fechado de processamento. Seus fundadores possuíam distinções, o que nos obriga a buscar uma análise minimamente apurada de seus meios, antes de algum julgamento pré-estabelecido. Desta maneira, positivistas e marxistas não são os “vilões da historiografia”, no entanto, são frutos do seu próprio tempo.   

Se positivista tornou-se sinônimo de antiquado e ignorante, sendo atualmente rejeitados, sua influência ainda repercute entre seus opositores. É preciso ter muito cuidado, portanto, ao declarar de forma tão afirmativa sua abolição, ou mesmo sua transposição – templos positivistas existem ainda hoje e muitos historiadores estão redescobrindo os antigos meios de se fazer a história.


1. Como sugerido por um fiel católico durante a Cruzara Albigense de meados do séc. XIII: "Matem todos! Deus reconhecerá os seus.". 

 

REFERÊNCIAS 

 

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo, SP. Lafonte, 2019. 

BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro, RJ. Editora Record, 1991. 

BURKE, Peter. Escola dos Annales: A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo, SP. Unesp, 1992. 

CARR, Edward Hallet. Que é História? São Paulo, SP. Paz e Terra S.A., 1996. 

CASTRO, Thales. Teoria das Relações Internacionais. Brasília, DF. FUNAG, 2012. 

DESCARTES, René. O discurso do método. São Paulo, SP. Editora Ltda, 1996. 

HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo, SP. Companhia das letras, 2013. 

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP. Editora da Unicamp, 1990. 

OLARTE, Renán Silva. Del anacronismo en Historia y en Ciencias Sociales. Bogotá. História Crítica. n.362, nov. 2009, p.278-299.  

Comentários