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Devemos jogar o bebê Lamarck fora com a água do banho?
Em 1973, o biólogo Theodosius Dobzhansky escrevera um famoso texto no qual ele intitulou de “Nothing in Biology Makes Sense Except in the Light of Evolution”. Publicado inicialmente na American Biology Teacher, o texto, que numa tradução livre significa algo como “Nada faz sentido na biologia a não ser à luz da evolução”, demostra a relevância angariada pela teoria sintética da evolução desde a moderna visão de descendência com modificação anunciada por Darwin em meados do século XIX.
O livro “Les Théories de L´evolution”, de Yves Delage e Marie Goldsmith, publicado na França de 1909, aborda uma série de “teorias” de caráter evolutivo que competiam a época com o darwinismo. Em 1974, Ernest Boesiger disse que: "A França, hoje, é uma espécie de fóssil vivo na rejeição das modernas teorias evolutivas”. Apesar da brutal relutância de muitos intelectuais na adoção da até então hipótese darwiniana, ela se manteve de pé, em parte, graças a sua aplicabilidade e a sua replicação por meio de modelos matemáticos em populações naturais perpetradas por Ronald A. Fisher, Sanderson Haldane, Dobzhansky, dentre outros. Desse modo, a hipótese alçou voo para a categoria de teoria científica, eclipsando as demais abordagens.
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DELAGE, Y.; GOLDSMITH, M. Les Théories de l'Évolution. |
Embora, estejamos familiarizados com a ideia do DNA de fita dupla responsável pelas características dos seres vivos, Darwin não conhecera o mecanismo central da hereditariedade, que foi descoberto apenas em meados de 1953 por Francis Crick, James Watson, Maurice Wilkins e Rosalind Franklin. Entretanto, isso não impediu o naturalista de elaborar a sua famosa teoria evolutiva.
No começo do século XX uma série de intelectuais do chamado ciclo de Viena buscavam, dentre outras coisas, formalizar e unificar as ciências naturais, bem como, tinham a pretensão de expurgar toda e qualquer concepção metafísica da linguagem científica da época, a fim de torná-la precisa e inequívoca. Concomitantemente, e não por acaso, no interior da biologia ocorria a integração entre o Darwinismo e as ideias de Gregor Mendel, cujas pesquisas foram essenciais para o entendimento da herança genética passada entre as gerações de seres vivos.
Ainda que hoje a síntese moderna da evolução seja o modelo central da lógica na qual a biologia assenta-se, como bem enfatizado por Dobzhansky, descobertas recentes do campo biológico tendem a abarcar a nossa visão clássica de evolução, de modo a torná-la ainda mais abrangente. O assim chamado “efeito Bogert”, por exemplo, pode gerar uma espécie de inércia na pressão seletiva ocasionado por algum tipo de comportamento. Numa das primeiras edições da Evolution, Charlie Bogert exemplifica que certos comportamentos termorreguladores conseguem retardar a evolução fisiológica. Segundo Martha M. Munhoz “o comportamento é um dos principais arquitetos da evolução”, uma vez que ao modificar a forma de interação com o ambiente os organismos influenciam a seleção natural, ampliando-as ou atenuando-as.
As expressões gênicas herdadas ao longo das gerações são lidadas através da epigenética, um ramo da biologia que nos trouxe à tona a relevância das influências ambientes para a forma na qual os genes irão interagir entre si, bem como quanto ao fator comportamental que pode ser determinante para a forma que esses genes irão se esboçar nos descendentes dos organismos. O “inverno da fome” ou Hongerwinter, por exemplo, ocorrido na Holanda durante a Segunda Guerra Mundial, não ficou apenas na memória coletiva dos sobreviventes, mas também na memória genética das pessoas; cravado na configuração expressa pelos genes daqueles indivíduos e dos seus respectivos descendentes. Os organismos das crianças que estavam no útero de suas mães no período da escassez de comida foram “programados” a aprender a viver com pouca comida, através de mecanismos que potencializavam a formação de gordura, além de outros levantamentos feitos pelos pesquisadores. Tais abordagens estão por trás daquilo que recentemente vem sendo chamado de "neolamarckismo", o que não significa que ambas as abordagens sejam idênticas - o que seria uma simplicação exagerada.
Apesar de Lamarck ser comumente visto como opositor de Darwin pelo ensino de biologia, por conta da sua lei de “uso e desuso” e mesmo que, tal como Darwin, não tenha enxergado a questão evolutiva em termos de código genético - que foi descoberto posteriormente - não podemos negar a aparente familiaridade da abordagem Lamarckiana com a epigenética da atualidade. É possível que um viés binário possa ter, em certo sentido, nos impossibilitado de abordar a questão evolutiva em termos mais assertivos, visto que, mesmo as especializações celulares que permitem a construção de diferentes órgãos do corpo humano ou aqueles que ocorrem nas demais espécies são explicados por meio da epigenética, onde certos genes são expressos ou “utilizados” de maneiras distintas de outros.
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