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A CENTOPÉIA DE KIPLING
Por Paulo Rodrigues
Era uma vez uma centopéia. Num certo dia, ao ser elogiada por sua estranha e impressionante memória, por lembrar qual de suas cem pernas deveria ser movida antes e qual deveria ser movida depois, a pobre centopéia não foi mais capaz de dar um só passo.
Embora simples, esta história tenha muito a nos contar. Em face às banalidades do dia a dia, somos governados por rotinas que, muitas vezes, se colocam à frente de qualquer possibilidade de questionamento. Quando uma pessoa qualquer está aprendendo a andar de bicicleta, provavelmente ela hesite ou leve alguns tombos, isso a deixará atenta a cada segundo da situação em que se encontra. Porém, com o passar do tempo ela irá se acostumar com aquilo e passará a andar despreocupadamente, sem mesmo pensar ou calcular suas pedaladas – que a essa altura já se tornaram inconscientes.
O aprendizado faz com que se gaste pouca energia, além de possibilitar que seja possível praticar outras ações concomitantemente. O mesmo serve para quando aprendemos a falar (mesmo que seja com as mãos, como fazem pessoas com surdez), ou quando estamos aprendendo um novo idioma, quando escovamos os dentes, etc. Tudo isso exige um conhecimento prévio, advindo de experiências passadas, à isso chamamos conhecimento tácito.
Embora o conhecimento tácito tenha seu papel, ele pode ser bastante problemático. Quando repetimos muitas vezes determinado comportamento ou ideia tornamo-nos familiarizados com aquilo; perde-se a curiosidade; tudo aparece-nos como auto-evidente e óbvio. Logo, é necessário uma grande resistência para o questionamento daquilo que parece que “sempre esteve ali”.
Grande parte da população alemã foi de certo modo ludibriada e levada a acreditar na existência de uma suposta superioridade racial que teve seu auge com o holocausto. A frase “uma mentira dita mil vezes é dada como verdade” é comumente atribuída a Joseph Goebbels, um dos principais propagandistas de Hitler e alguém que, ao que tudo indica, entendeu muito bem como se legitima um discurso, ainda que falso.
A descoberta de que muitas de nossas crenças são equivocadas pode ser frustrante e muitas vezes paralisante. Como a centopéia, que ao tomar consciência de si, perdeu a capacidade de andar. A sensação de falta de controle da sua própria vida, de ser livre e ao mesmo tempo não ser, é apenas o sintoma de algo bem mais profundo.
Conhecemos apenas uma pequena parte do universo, nossa percepção pode ser falha e enganosa. Por isso, a ciência pode servir como uma ferramenta bastante útil, para expandir nossos horizontes para além da nossa humilde, singular e estreita biografia. A primeira barreira a se ultrapassar encontra-se muito provavelmente em nós mesmos. Se desvencilhar de ideias pré-concebidas é um grande desafio a qualquer indivíduo, mas para quem gosta de viver de maneira "consciente", esse é um esforço a ser levado em conta.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro - RJ: Zahar, 2010.
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